São Paulo Metrópole Contemporânea - Território Cindido
DENISE XAVIER
O processo de urbanização hoje instalado no mundo aponta para a urgência da discussão de seus conteúdos. Herdeira da metrópole industrial a metrópole pós-industrial se desdobrou como fenômeno e hoje revela características e, principalmente, prognósticos bem menos otimistas.
A fé no progresso - como uma conquista possível pela manipulação do mundo da técnica, promovida pelas formulações modernas na primeira metade do século XX - viu na segunda metade seu poder minguar. A identificação das limitações das ações planejadas no controle dos processos autônomos da paisagem urbana frustraram as perspectivas revolucionarias modernas.
Assim, quando hoje se toca no tema –a metrópole contemporânea - nota-se, por parte das várias áreas de conhecimento, a presença de um tom bem menos assertivo e um tanto mais circunspecto dos que alimentaram as promissoras teorias da metrópole moderna. O que pode ser atribuído à uma certa consciência desoladora dos fatos que envolvem a produção do espaço urbano – e especialmente os que dizem respeito a formação das grande metrópole- não serem propriamente o anúncio de um futuro melhor.
De lá pra cá o próprio roteiro da atuação profissional do urbanista parece ter revertido seu sentido cronológico. De uma prática cuja matéria se baseava no presente para antecipar os resultados do futuro, hoje opera no organismo simultaneamente, e até posteriormente, a sua consecução. As ações de intervenções urbanas perderam sua perspectiva cirúrgica e passaram ao universo da sutura tópica. Assim o urbanista lida hoje muito mais no âmbito dos déficits do que das estimativas.
A intensa proliferação de termos que encontramos nos textos atuais sobre as cidades, como: Cidades Globais, Megacidades, Macrometropóles, Metápolis, Hiperurbanismo etc - reflete o esforço de classificá-las e aponta a dificuldade de circunscrever os complexos aspectos do fenômeno. Em certo sentido, no entanto, estas classificações parecem convergir e apontar para uma questão comum relevante. Que é a inversão da lógica moderna que relacionava - crescimento físico das cidades – com desenvolvimento tecnológico e econômico. A classificação de Megacidade e Cidade Global [2], sugerida pela ONU, da conta que agora o “organismo dimensional” – fenômeno de concentração populacional em um território; não implica na realização de um “mecanismo deeficiência” - sistema organizacional capaz de irradiar poder; dialética considerada, na visão moderna, natural dos grandes centros urbanos industriais.
Hoje se sabe que o fator dimensional do crescimento urbano não significa sinônimo de desenvolvimento, ao contrário, se tornou um dos fatores que mais pesam na balança de dependência econômica entre grupos. A expansão do crescimento urbano, em paises economicamente periféricos, ilustra a questão – assim os chamados hiperurbanismos [3] – antes de representar a possibilidade de emancipação para as nações subdesenvolvidas, implicará na sua provável condenação ao atraso e à dependência.
É bom lembrar, no entanto, que isto não significa que as grandes cidades deixaram de representar pólos importantes de concentração de capital e desenvolvimento tecnológico, mesmo para as nações pobres. Ao contrário elas hoje são vistas como um “mal necessário” - peças estratégicas para a manutenção do sistema financeiro de um país. Essas cidades passaram assim a desempenhar um papel complexo e tenso – ao conter em seu território de um lado sua ânsia pelo desenvolvimento e do outro as defasagens sociais naturais das economias dependentes.
A construção do meio urbano sempre foi resultante de uma operação complexa de forças e interesses dissonantes. A passagem da sociedade industrial para a pós-industrial torna o organismo urbano uma estrutura ainda mais sofisticada e instável uma vez que associada à lógica volátil do capital.
Segundo a ONU [4] o ano de 2008 marcará definitivamente a opção mundial pela vida urbana. Nesse ano pela primeira vez na história veremos a população urbana superar a população rural, e a expectativa é que até 2050 70% da população mundial esteja vivendo nas cidades.
Esse panorama corrobora para a necessária mudança de postura da sociedade e de seus meios especializados diante dos processos perversos que vem regendo e conformando a realidade urbana contemporânea. Aqui todos temos um novo papel diante do fenômeno, num esforço conjunto que deve culminar na compreensão, crítica e desenvolvimento de mecanismos de ação.
Tradicional pólo de concentração de negócios, desenvolvimento tecnológico e irradiador de influências, São Paulo ocupa hoje o 5º lugar das cidades mais populosas do planeta e também já se encontra ranqueada como uma cidade global.[5]
São Paulo como qualquer outro grande centro anseia pelo consolidação desta classificação, já que isso a avaliza na disputa do capital que alimenta o mercado financeiro internacional. Assim para poder se tornar atrativa à fixação do capital global, a cidade vem submetendo o seu território à ajustes para corresponder às exigências de tal mercado.
A sua paisagem, no entanto, não se submete integralmente a essa nova lógica. Ao contrário, inserido em um contexto econômico de pais dependente, as naturais contradições que acompanham toda concentração de renda em um território tenderá a se tornar mais aguda. Assim, a resistência aparecerá de modo explicito na formação de uma paisagem descontínua e contrastante, atributos que podem significar obstáculos à acomodação e reprodução deste capital.
Apresentando características típicas da economia que neles se reproduz – os novos ambientes da metrópole contemporânea – se dão pela materialização do binômio – concentração de riqueza e estratégias de exclusão social.
Não é difícil notar a paisagem discrepante que geram, basta tomarmos como exemplo a porção territorial eleita como representante deste novo contexto – o setor sudoeste – mais especificamente os eixos da Av. Luís Carlos Berrine e Marginal Pinheiros, neles concentrados uma série de edifícios e ações urbanísticas típicas desta dinâmica. Nessa porção de cidade favelas fazem divisas com condomínios de alto padrão e autoconstruções disputam paisagem com edifícios inteligentes de escritórios [6]. Nesse cenário o sentido de apartheid social transpira em seu aparato físico.
Seguindo os princípios impostos por um capital desterritorializado a arquitetura que compõem o cenário dessas novas porções de cidade, nega a sua realidade física imediata. Neste contexto todos os edifícios são propositalmente semelhantes. Na presença desta arquitetura temos a sensação de estarmos em vários lugares simultaneamente – Cingapura, Tóquio, Sidney, Nova York etc.- ao mesmo tempo em que sua total independência do contexto local nos suspende a possibilidade da certificação de um lugar específico. Deste modo essa arquitetura guarda uma curiosa característica de parecer com “todos” e “nenhum lugar” ao mesmo tempo; uma cidade de aspecto genérico. [7]
Paisagem que alia arquitetura de aparência tecnológica, com sistemas de segurança e controles avançados com áreas públicas residuais e deficiências de serviços urbanos. Todas medidas estratégicas de exclusão afim de tornar essa porção urbana segura à reprodução do capital uma vez que impermeável à ameaça do desenvolvimento de uma instância pública.
Nessa corrida especulativa a cidade exibe o registro de sua alteridade, em porções informes de paisagem que o capital ainda não conseguiu suprimir por completo. Edifícios inteligentes, cápsulas de luxo herméticos ao contato da vida nas ruas, donos de sistemas avançados de segurança para garantir a seleção de sua freqüência observam a cidade sem ser observado; dali de cima – à distância - a cidade parece segura
Aqui o conseqüente aprofundamento das distâncias sociais associada à contigüidade física de realidades espaciais tão díspares faz do espaço urbano um palco de atritos sociais insustentáveis. A cidade vê assim seu substrato social se fragilizar no momento em que cede sem questionar às incessantes exigências do capital global.
A ameaça de um colapso interno à metrópole contemporânea, já vem há muito tempo apresentando seus efeitos. Dos temas eleitos como indicadores da deterioração da qualidade de vida nas metrópoles hoje - a violência urbana - é sem sombra de dúvida o assunto que mais intriga e mobiliza a sociedade como um todo.
A sensação de opressão vivida pela sociedade a partir da escalada da violência no meio urbano vem compondo uma nova geografia para a cidade - a geografia do medo. Assim a cidade de maneira reativa reedita seus espaços através de uma estratégia simplificadora de ação - cujo o valor definitivo reside nos conceitos de controle, defesa e repressão - todas técnicas que se limitam a conjugar os princípios da segregação social como solução para o conflito.
Os chamados enclaves fortificados [8] parecem resumir a resposta reativa da metrópole contemporânea que vê no convívio com o diferente uma ameaça. Nesses espaços a presença de um único grupo social representa uma condição tranqüilizadora, neles a relação entre iguais em espaço privado é visto como uma arma à ameaça da vida pública.
O fato que se nota é que a cidade ao adotar o espaço da homogeneidade e da exclusão como ideais a serem reproduzidos, acaba por minar exatamente aquilo que havia de mais característico, (e por que não dizer enriquecedor como fonte de experiências), na formação da cultura urbana – a heterogeneidade [9] .
A proliferação desses espaços entrópicos e excludentes provoca um efeito devastador nos espaços tradicionais da cidade. Os espaços públicos – lugares tradicionais da manifestação da vida publica – hoje demonstram através de seu declínio e deterioração física a erosão [10] de seus sentidos e significados simbólicos.
O abondono dos espaços públicos – principalmente os referentes aos centros históricos das cidades – ocorre não apenas por que estão sendo substituídos para outras ilustrações espaciais da sociedade, mas também por que os sentidos dos quais esses espaços são, ou foram, representantes – a vida pública, a sociabilidade, o sentido comunitário – minguaram. Hoje a sociedade vê naquilo que é privado, individual e excludente valores que aplacam a sensação generalizada de insegurança.
Assim o que está em jogo hoje é a própria identidade urbana que se forjou na cultura do choque, identificação, negociação e tolerância com a diferença. Ao contrário, a cidade de hoje vem se estruturando pela homogeneidade, segregação, desconfiança e intolerância, em espaços mesquinhos onde códigos de segurança preponderam sobre os sentidos de sociabilidade.
Deste modo a reprodução deste modelo de cidade pode acarretar na construção de uma estrutura social definitivamente cindida. Onde separados – “aqueles que possuem”, “daqueles que reivindicam o acesso” irão se chocar.
A cidade contemporânea é hoje palco de forças dialéticas perigosas – por um lado a presença de estratégias espaciais para a fixação do capital global que transformam, de forma impositiva, o território da cidade. Por outro o acirramento das distâncias sociais, potencializada em países de economia dependente, que fazem surgir reações de disputa entre grupos – manifestando assim os sinais dramáticos de sua corrupção interna.
Uma tal estrutura urbana não pode perdurar sem significar uma ameaça à própria manutenção da vida urbana. Essa profunda contradição trazida pela natureza da metrópole contemporânea vem colocando a inquietante pergunta que urge entrar para agenda de reflexão dos meios especializados e da sociedade como um todo:
Qual será o futuro da convivência humana nas metrópoles?
Notas da autora:
[2] Pela definição da ONU, os grandes centros se dividem em Megacidades (ou Megametropoles) e Cidades Globais (ou Cidade Mundiais). Segundo esta classificação uma Cidade Global pode ser uma Megacidade, mas uma não implica na outra. As Megacidades são aquelas com mais de 10 milhões de habitantes. A ênfase numérica indica que a essência deste fenômeno não se encontra vinculado à mecanismos de desenvolvimento e crescimento econômico. Estas são as características encontradas em outra categoria de cidades – as Cidades Globais - estas sim, pólos de concentração de capital e desenvolvimento tecnológico.
[3] CASTELLS, Manuel . A questão urbana. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1983. p.79.
Para o autor esse termo representa o fenômeno notificado em países subdesenvolvidos onde o nível de urbanização é superior ao que
poderíamos alcançar “normalmente” em vista do nível de industrialização.
[4] World Urbanization Prospects The 2007 Revision, Highlights da ONU (fev. 2008)
disponível em : http://www.un.org/esa/population/publications/wup2007/2007W
[5] Megacidades - Grandes Reportagens. O Estado de S. Paulo ; agosto 2008 . P. 12
[6] FIX, Mariana. Parceiros da Exclusão. São Paulo: Boitempo, 2001.
Mariana Fix trata do processo de redimensionamento desta porção do território da cidade de modo detido e cuidadoso, em seu livro
Parceiros da Exclusão .
[7] Rem Kollhaas –The generic City . [IN] Domus, 791 , 1997.
[8] CALDEIRA, Teresa Pires do Rio . Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo.São Paulo : Ed. 34/ Edusp,2000. p. 257.
A autora neste livro define de enclaves fortificados por porções espaciais do território da cidade isoladas e preparadas para conter vida apartada do contato com o espaço publico – são exemplos de enclaves , condomínios fechados, shopping center, conjuntos de escritórios entre outros; todos espaços privados de
uso coletivo porém com caráter segregacionista.
[9] CASTELLS, Manuel . A questão urbana. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1983, p.129.
[10] MEYER, Regina M. P. O espaço da vida coletiva [IN] Os centros das metrópoles São Paulo : Editora Terceiro Nome : Viva o Centro :
Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 31.
Acessos: 2350